quinta-feira, 26 de dezembro de 2019



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A prática do cuidado clínico: a atualidade do que não se pode medir



O dilema sobre o lugar que ocupam dor, angústia, sofrimento e ato do cuidado aparece em cada encontro terapêutico de quem cuida e é cuidado. As grandes epidemias e pestes – ainda que frequentemente anunciadas – não estão mais em destaque no nosso tempo. Temos, em ascensão, sofreres difusos, sem limites e rótulos nítidos, com denominações múltiplas, que encontram abordagens apoiadas em vetores explicativos que hoje já mostram seu esgotamento, sua insuficiência.

De fato, as práticas clínicas foram disciplinadas para se alinharem à grande Ciência que tudo mede, conta e pesa, independente do que cada coisa possa significar. Exonera de seu foco a vida das relações e a forma como cada um experimenta seus sintomas, afirmando os resultados obtidos nas condições “puras” e ideais dos laboratórios, como parâmetro-guia das práticas do cuidado. Mesmo que estes sintomas e essas práticas aconteçam na vida impura e pecaminosa dos corpos e das almas de todos. Se e quando considerados, os fatores imponderáveis do cotidiano são reduzidos a categorias isoladas, também sem interações. Ao final, o que se utiliza é um modelo com uma lista idealizada de agravos ordenados em tabelas que não são capazes de acondicionar o mundo animado por dores e sofrimentos singulares. Satisfatório para explicações, insuficiente para subsidiar o cuidado.

Assim, o imperativo da liturgia tecnocientífica reduz cada dor, cada esboço de gemido à dimensão material explicável e verificável por seus instrumentais. E, sem escuta e olhar para a dimensão não codificável do sofrimento, as angústias, as dores-da-alma, os rangeres-de-dentes e apertos-do-coração, permanecem emudecidas e latentes. Porque percebidos e narráveis, mas não subsidiados na razão técnica.

E, se invisíveis para uma universalização racional objetivista, esses sofreres latentes permanecem disponíveis para manifestarem-se nas inflexões que cada biografia humana apresenta. Se nós, profissionais do cuidado, ficarmos atentos podemos perceber: cada portador de uma queixa clínica nominada insiste em nos convidar para o simbólico embutido. Como se cada nome de doença ou resultado de um exame não conseguisse ficar puro e limpinho (como gostaríamos, nós os diagnosticadores) de seus significados e impactos no mundo da vida. O paciente (patiens: aquele que padece), parece buscar o olhar para seu sofrimento e não o enquadramento classificatório de sua narrativa. (Mesmo que, hoje, percebemos também o paciente buscando explicações racionais e incessantes para seus agravos, chegando talvez à agonia do totalmente pensado, citada por Gilberto Safra.

Eu, médico, me bato nesses dilemas e observo repetidamente certas angústias não vividas, não significadas, fortemente associadas a sintomas crônicos. Viktor Frankl faz uma aproximação para refletirmos sobre isso: o sentido da existência (ou a falta dele) é premissa importante na capacidade com que lidamos com as vicissitudes. A partir dessas reflexões, como médico de família, fui percebendo os movimentos emocionais dos pacientes em suas biografias e me carregando de perguntas.

O conceito de experiência como sensação + significado permite-nos aprofundar a busca da compreensão do cuidar terapêutico. Larrosa Bondia é definitivo nesse tema: é possível perceber que esse lugar da experiência pode ser uma ponte para um núcleo pessoal mais profundo e essencial de cada humano. Porque é um lugar misterioso que transcende a racionalidade. Como se fosse uma janela que permite vislumbrar a essência, tanto originária do humano (assim chamada ontológica) quanto a que acolhe os acontecimentos de cada existência singular (chamada ôntica). E, se o homem é uma pergunta ambulante em direção ao sentido fundamental da existência (Safra, Hermenêutica da situação clínica, Pg 22), então as experiências são momentos onde todos tocamos, de algum jeito, a profundidade do ser. O sofrimento é uma dessas pontes importantes para essa essência.

A dimensão mais profunda do ser manifesta-se, tanto individual quanto socialmente, através da ética, da estética e do sagrado, chamados por Safra como o Ethos humano. Se observarmos que, Ethos, em grego, equivale tanto a hábito quanto habitação, podemos inferir que a ética tem morada no hábito, no cotidiano escolhido pela individualidade humana. Lembrando que Aristóteles afirmava claramente que o hábito é ação escolhida do ser humano, portanto não automático, não instintivo. Ou seja, o Ethos afirma o ser em sua individualidade, através a ação cotidiana ética, estética e sagrada (que podemos chamar de “encantada”).

E os profissionais de saúde são convidados o tempo todo a tocarem essa dimensão profunda da essência da pessoa que procura cuidado. Pois na dor, angústia e sofrimento manifesta-se o mais profundo de cada um. E todo contato com essa face tão reveladora, mas tão exposta, exige um cuidado ja conhecido de todas as culturas. Os cuidadores da tradição sempre são preparados em longos rituais para desenvolverem o olhar e o zelo para o momento terapêutico.

A racionalidade que embasa a nossa prática é irrenunciável, claro. Mas sem uma ampliação da percepção, não será possível tocar a essência do ser.

Talvez os profissionais de saúde desta época tenham que sensibilizar seus órgãos de percepção pra ouvirem e verem as outras dimensões desse ser humano e acompanhá-lo em sua cruzada, em busca das respostas para o sentido da existência.


quinta-feira, 9 de julho de 2015


09 de Julho de 2015 - Sem ponto-de-amarração, sem pertencimento. Ou, porque a hiperatividade está inserida no nosso contexto.

Um pai, mirando seu filho de 6 anos e tres meses, esboçou um "Essa turminha de agora não tem ética, não é". O menino atualmente faz uso de Ritalina: o coordenador da escola pediu que os pais "tratassem" o aluno após ele desferir um soco na professora, uma das últimas pessoas que ainda toleravam as grosserias do inquieto pentelho e mantinham algum tipo de vinculo.
Me parece que as gentes precisam se sentir cidadãos. Sentir que pertencem. Identificados com alguns pontos deste mundo de cheiros, cores, sons, afetos, eventos e lembranças. Sensações e informações.
Ja conforme vão chegando por esta terra, vão querendo criar os referenciais, amarrando suas cordinhas no mundo pra se identificarem. Devagarinho se estendendo como identidade com as outras gentes e coisas.
Com essas instancias primeiras, que vão reconhecendo (desde que elas, as instancias, se afirmem redundante, rítmica e persistentemente) como se tudo fosse teta. Como se tudo fosse mãe. Tudo fosse casa a receber o chegado pra se assemelhar.
E bem devagarinho. Que a gente chega ressabiado e estranhando o que, por ser nunca-visto, de fato é estranho. E deveria ser acolhimento - desde que esse nunca-visto, se afirme redundante, rítmica e persistentemente.
Amarramos uns cheiros, luzes e sons aqui e, se repetirem ritmicamente, essas sensações nos fazem parte. Nos identificam e nos suportam. São extensões de nós. São nós. Então nós pertencemos e nos pertencem.
Quando - por ficar mudando o tempo todo, ou por não ser morno, terno e macio - não conseguimos amarrar o barco em algum ponto de amarração que possa dar algum traço de identificação, por Dios!, não firmamos esse espaldar da nossa identidade primeira. Vamos ficar girando doidinhos.
Ficamos com múltiplas simulações de um cenário em que não conseguimos parar pra nos enxergar como cidadão de lá. Tirar a carteirinha da identificação com aquele cantinho da existência mais grande.
Então a gente se inquieta. Se agita sem fim em busca de um sinal de pertença. Um agito desesperado, que gira e não para. Uma atividade hiperativa.
Será que por isso a palavra ética (ethos) em grego se assemelha a hábito, costume e, curiosamente, o lugar onde se vive, onde se habita? (O hábito neste contexto é aquele que adestra-nos contra o instinto). Porque a gente habita mesmo é dentro de nossos pertencimentos que nos referenciaram sempre.
Acho que o pentelho, cujo pai perguntou-se se o filho não tinha ética, de fato não teve chance de ter sua habitação, seu cantinho de identificação fixa. Constatei junto com os pais, que ele nunca pode estabelecer os referenciais de amarração repetidamente (pra se habituar, se acostumar) para se sentir acolhido em uma morada, em uma habitação. Ele, o veloz pentelho, não encontrou uma ethos.

Então, de fato, ele não era ético.

Talvez, por não se sentir pertencente e se reconhecer no mundo, se agite em desespero e hiperatividade buscando sua ethos. Eu, faria bem pior.
Vamos dar Ritalina ou tratar o contexto?


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Profissão como meio ou fim.




Leio uma reportagem no site BBC Brasil (http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/09/140920_salasocial_eleicoes2014_saude_abre_medicos_cc) que o tal de Medcurso (cursinho que prepara sextanistas do curso de medicina para as provas de residencias) ensina que os alunos devem caprichar pra passar nas provas de residencia. Senão serão médicos do PSF (que, segundo o texto, significa Posto de Saude da Familia) e irão trabalhar de chevetinho 87, enquanto o cirurgião plástico irá trabalhar de carro importado.

Eu poderia parar por aqui, já que a assertiva, por si só, tudo revela, tudo explica.

E não vou cair na tentação de dizer que o médico geral de familia e comunidade ganha bem etc. Não vou discutir isso.

Pra ser bem curto - queu tenho que aprender, por estas esferas virtuais - achei interessante como a ideologia do "esperto" enfim parou de se disfarçar e está transitando pelas calçadas sem nada a ocultar. Alias, com um certo exibicionismo.

Porque a gente deve ser médico pra comprar carro importado. E a história do papel social de cuidar do sofrimento, babau.

Quem fizer Plastica porque tem realização por isso, parabéns. Mas quem fizer desse oficio, ou de qualquer outro, só instrumento de ganho, talvez procure a vida e só encontre a angustia.

Arrogantemente, decreto: essa é mais uma pedrinha na construção do vazio. Ganha grana e não necessariamente ganha possibilidades. Talvez não tenha significado além do resultado financeiro naquilo que faz. E sem significado, não ha sentido.



Apenas isso. Sentido pra vida.

Não é, Viktor Frankl?

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Gripe & mortes: as febres que nos protejam


Escrevo com pretensão de oportunidade.

Essa questão de mortes por gripe, de qualquer tipo, de A a Z, é de preocupar e angustiar a todos. Mas talvez possamos enxergar nesse cenário de Gripe A uma espécie de transição nos modelos que conformam atualmente a visão de saúde-doença. 

Inicialmente, essa fúria classificatória com algarismos e letras para tais e quais "seres" que, de alguma forma, contribuem com o adoecimento e morte das gentes têm sido pouco para ajudar a aplacar o sofrimento de quem precisa. Isso foi interessante antigamente. Neste momento, insuficiente. Talvez inútil ou, no limite, lesivo.

Os socorristass estão "tratando" os quadros gripais com o padrão de quem está sem Norte: ATB + corticóide (pau pra toda obra, quando não se tem outra arma à mão). Uso o termo arma porque revela a forma beligerante de ver crescimentos oportunistas como bandidos e nós, médicos e drogas, como mocinhos. Repito: se foi assim necessário em outros momentos de predomínio de doenças infecto-contagiosas, hoje é supérfluo ou lesivo, mesmo tratando-se, neste caso, de "virose".

Se esta minha especulação pretensiosa for adequada, ou seja, que ver virus e bactérias como monstros destrutivos de forma maniqueista não dá mais conta, poderíamos especular mais: 
  • Será que, digamos, o uso de antitérmicos indiscriminadamente(sem o mínimo estudo de longo prazo sobre consequencias para o sistema imunológico), como se faz hoje em TODOS os serviços, não é um contribuinte para vulnerabilizar mais as pessoas (já que a manutenção de temperaturas elevadas reduziria drasticamente a replicação viral)? ESTOU ME REFERINDO AOS EFEITOS TERAPÊUTICOS DA FEBRE. Pacientes internados em UTI sem uso de antitérmico tiveram menor mortalidade que aqueles que usaram antitérmico... Vejam um trecho de um artigo da  Crit Care Resusc. 2011 Jun;13(2):125-31 "...At febrile temperatures, direct inhibition of heat-sensitive microorganisms, such as influenza virus4 and Streptococcus pneumoniae, can occur; as can the induction of protective cellular6 and immune responses. Increased antibiotic activity at elevated temperatures has also been demonstrated in vitro. In animal studies, suppression of fever with antipyretic drug therapy has been shown to increase mortality among subjects with viral, bacterial and parasitic infections.

    Observational studies of humans have shown a positive correlation between febrile temperature during bacteraemia and survival and hypothermia as a manifestation of
    sepsis is a negative predictor of outcome. In other human studies, antipyretic drugs have been shown to increase the duration of chickenpox illness..."

  • E por que antibióticos? Se for a lesão pulmonar dramática causada pelo H1N1 (mesmo que rara é horrivel)que mata, então o paciente não morre pela bactéria e sim pelo virus, portanto antibiótico é inútil. E, em saúde, não ha inocuidade: se não é útil é danoso. Os abusos de antibioticoterapia só servem para reduzir ainda mais a tensão-imunológica (para cada germe, um cenário correspondente de resposta) necessária para nosso equilíbrio.
Assim, chegamos a um ponto em que a discussão teria que se dar na mesa dos pesquisadores dos níveis de atenção secundário e terciário (especialistas e hospitais universitários). Mas, escrevo isto tudo pra dizer que nós da Medicina de Família e Comunidade podemos, sim, contribuir com as buscas de recursos para dar conta deste, digamos, tsunami. E essa contribuição se dá convidando os colegas dos outros níveis de atenção para sairem de seus microscópios e tubos de ensaio e virem observar e cuidar dos pacientes de forma desarmada, interrogando esses pacientes sobre seus reais sofrimentos, acolhendo-os, investindo nas defesas do próprio organismo e utilizando os recursos que, de alguma forma, não estejam tão profundamente implicados na ordem do mercado.

Não vou discutir exatamente tratamento da gripe A, porque, justamente discordo dessas classificações iluministas que ocultam o ser e ignoram o contexto eco-social. Porque a discussão, me parece, deve se dar sobre o mérito das abordagens, escapando dessa visão unifocal que tudo objetifica, não sendo capaz de discutir-se a si mesmo.

Vamos ousar descobrir furos nesse descaminho biomecânico que deu o que tinha que dar?

Ou vamos nos proteger com Oseltamivir, vacinas e mais artefatos que se vendem no varejo, mas que não nos ajuda a enxergar o singular de cada um, as respostas inexoráveis da Natureza?

segunda-feira, 26 de abril de 2010



Ainda a Gripe A/H1N1




Liga-me Maria Francisca perguntando se deve ou não vacinar Luana, sua filha de 5 anos, contra a Influenza A/H1N1, além dela própria. Cá comigo pondero todas as variáveis envolvidas e tento equacionar de uma forma singular e pessoal, o caso de cada uma. A pequena Luana foi amamentada durante doze meses, é saudável até o momento (jamais necessitou usar antibióticos). Sua mãe, Francisca, é fumante, vive com uma tosse que não passa e, mês passado, por um cálculo renal acabou desenvolvendo infecção urinária que, para encurtar a história, redundou em três dias de passagem pela UTI. Portanto, saúde frágil. Provocante, pergunto por que ela própria deveria ser vacinada. Ela prontamente me responde que deve prevenir-se já que não quer passar por outra estada no hospital...


A partir dessa imagem do cotidiano de um médico de família e comunidade - que cuida de sujeitos sociais (não apenas de doenças “objetivas”) - me surgiram outras reflexões, para além deste anedótico caso: se Maria Francisca quer prevenir-se para não ter outra doença grave, por que não para de fumar, já que a principal ação preventiva para ela, sem quaisquer riscos de efeitos indesejáveis, seria parar de fumar e não, miticamente, buscar apenas a “vacina mágica” que vai salvar a lavoura?


Imaginei as ponderações, angústias e indecisões pelas quais passa um gestor, não de sujeitos individuais como eu, mas da saúde de uma população, o chamado “especialista em Saúde Coletiva”. Juntei as minhas reflexões e compartilho com vocês neste artigo os dilemas que, imagino, passam pelas mesas e cabeças desses gestores, tomando como um case a questão da vacina preventiva da Influenza A/H1N1, a gripe suína.



Um gestor de saúde deveria aconselhar a vacinacão para o grupo populacional pelo qual é responsável? Ou, quando for o caso, deveria comprar um lote de vacinas, transferindo recursos que seriam destinados para outros fins, como exame preventivo para câncer de colo de útero (Papanicolaou para todas as mulheres sexualmente ativas), câncer de mama (mamografia para mulheres maiores de 50 anos) ou câncer de intestino (sangue oculto nas fezes para pessoas maiores de 50 anos)?



Esse gestor terá que equacionar as variáveis que chegam até sua mesa, para reduzir as incertezas e tornar a plataforma para suas decisões a mais sólida possível. Mas, como fazer numa situação como essa, em que um alto grau de incertezas atinge todas as variáveis? Se utilizarmos um modelo explicativo oriundo das ciências exatas, poderemos reduzir a equação a uma mera somatória de vetores da qual extraímos uma resultante. É fácil perceber que esse modelo é insuficiente neste caso: os seres vivos não seguem seu devir por trilhos rígidos, lógicos e plenamente previsíveis. No planejamento da tomada de decisões desse gestor, as informações terão que proceder, sim, dos laboratórios de virulogia, dos boletins epidemiológicos mas, também, dos relatórios possíveis em que constem os desejos e interesses sempre envolvidos no tema. Vejamos como se pode seguir, nesse caminhar à procura de subsídios, para uma tomada de decisões.



INTER


A primeira parada dessa procura situa-se nas mais imediatas variáveis: impacto desse surto viral (mortalidade, por exemplo) e a efetividade/segurança da vacinação. E aí, quando nos detemos na busca desses indicadores interdependentes, já encontramos as primeiras dificuldades:




  • Ao compararmos a mortalidade da gripe A/H1N1 com a da gripe sazonal (comum), verificamos que esta é estimada pelo excesso de mortalidade com relação à media dos outros períodos do ano. Já a mortalidade da pandêmica é calculada com base no número de casos identificados. Só recentemente (março de 2010) foi publicada uma estimativa inicial mostrando que a gripe A/H1N1 parece ter importância na mortalidade pela distribuição etária (em torno de 35 anos) e não pelo número absoluto de pessoas. Isso resulta em mais anos de vida perdidos que a gripe sazonal, que prefere idosos.

· Ao avaliarmos a efetividade da vacina, novas frustrações: ainda não deu tempo de checar, poisefetividade em saúde, como se sabe, é a ação no mundo real. Ou seja: um grupo de pessoas vacinadas deveria ter menor mortalidade. Mas as informações são escassas pelo curto período decorrido. Assim só se observou a eficácia, que é a ação no mundo ideal: vacina-se e observa-se se o organismo produziu anticorpos. E isso não é suficiente. Os indícios não são, digamos, animadores: a Polônia decidiu não vacinar ninguém por entender justamente que não estava bem estabelecida efetividade e segurança dessa medida. Resultado: mesma mortalidade relativa que os outros países europeus que decidiram por vacinar a população. (cerca de 150 mortes para 38 milhões de habitantes). (Washington Post, January 13, 2010; VANESSA GERA. Poland stands alone in refusing swine flu vaccines)



Nosso gestor de saúde coletiva terá que buscar mais fatos e dados para dar sustentação às suas decisões, pois esses indicadores ainda estão pouco sólidos. Mas aí é que as coisas ficam mais incertas.


A gripe A/H1N1 é a primeira influenza pandêmica em 40 anos. Foi identificada em Abril de 2009, no México e declarada um evento importante pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Junho de 2009. Rapidamente foi elevada para o estatuto de pandemia nível 6. Em 2004 a OMS havia modificado os critérios para declarar o que poderia ser pandemia. Essa definição independe da severidade ou da virulência da doença, mas considera a disseminação geográfica. Ou seja: mate ou não mate, se estiver espalhada por vários países, em alguns continentes, de forma sustentada, é pandemia e pronto. E aí o nosso gestor de saúde coletiva para e lista suas questões. Será que a severidade de alguma doença interessa para os países do Primeiro Mundo (que, em última instância, são os que suportam e têm poder na OMS) se ela for limitada a uma pequena área, sem risco de disseminar-se? Diarréia, tuberculose, malária não são pandemias, não entram nas páginas dos jornais: estão restritas e guardadas nos países com baixas condições de saneamento básico e lá permanecem, sem risco de migrar para o primeiro mundo. Não importa se os germes que "causam" sejam vírus ou bactéria: o que determina doença e morte são condições sociais e o modelo explicativo estritamente biológico é insuficiente. Mas, ao contrário, perante qualquer possibilidade de uma doença que possa vir de avião para os países ditos centrais, temos que erguer uma bandeira de alerta e aí, sim, interessa a todos, apesar dos determinantes sociais. E, mesmo aqui, o modelo biologicista não é suficiente para subsidiar nosso gestor de saúde na tomada de decisão, pois chega até sua mesa a notícia sobre a decisão da assembléia da União Europeia de processar diretores da OMS, por suspeita de interferência da indústria farmacêutica em suas decisões ( BMJ 2010;340:c198: Politician accuses drug companies of overplaying dangers of H1N1 by Rory Watson). Nada que não seja óbvio.



Por isso, a notícia (BMJ 2010;340:c201: WHO vaccine expert had conflict of interest, Danish newspaper claims by Jo Carlowe) de que o consultor para vacinas da OMS, Juhani Eskola, recebeu uma doação (bagatela de nove milhoes de dólares - bobagem, cá entre nós) da GlaxoSmithKline para seu centro de pesquisa (Finnish National Institute for Health and Welfare) balança o nosso juízo. Esse é justamente o principal laboratório fabricante das vacinas para a gripe A/H1N1.


O gestor de saúde coletiva, ao ler essa notícia, tem que dar uma paradinha, rever as informações que, até agora, não aumentaram o seu grau de certeza. Infelizmente as planilhas com resultados "duros" de dados epidemiológicos não são suficientes, mesmo que muito mais exatas, muito mais seguras. O mundo, porém já não aceita mais reduzir a vida a números, o que era um sonho da ciência moderna. Pra espairecer, nosso gestor vai ler seus e-mails.


Recebe um alerta de sua prima dileta: os perigos da vacina da gripe A/H1N1: “aleja, paralisa, mata...”. O segundo mail (também da prima cuidadosa) explica fanática e vigorosamente que esse virus A foi fabricado e espalhado pelos laboratórios. Ou seja: não bastavam os desencontros das informações que estavam em sua mesa e vem, agora, as teorias conspiratórias. Tem também um link para um vídeo no Youtube que, longe de distrair, prova por a-mais-b que tudo isso é o castigo divino ao homem atual que pecou e agora está a pagar por tudo: é o final dos tempos, enfim...


Nem a arrogância da ciência, tampouco a ingenuidade das crenças conspiratórias deram conta de instrumentalizar os tomadores de decisão. E o gestor de saúde coletiva, ainda inseguro para definir solução, se surpreende ao ler uma notícia de que o Ministério Público Federal do Estado do Paraná solicitou uma liminar e um juiz deferiu para que se vacinem cem por cento da população do estado. Enfim, tudo estará resolvido através de alguns papéis que circularam pelos corredores da burocracia judiciária. Assim as incertezas de uma matéria tão complexa são “resolvidas”. Não por epidemiologistas, infectologistas ou outros da área. Mas por um profissional do direito que abre o peito e resolve tudo numa cartada grave e determinadora. E o nosso gestor, suspira meio frustrado e meio aliviado. As reflexões nem sequer foram consideradas pelo defensor que, certamente movido por rompantes heróicos, resolveu dar um murro na mesa e mandar cumprir algo, para cuja substância não tem aproximação necessária. Porque não é gestor de saúde coletiva. E, em gestão, quem tem que dar palpite é quem está imerso no tema, maneja variáveis e, após ponderações, decide.


O que posso perceber é que em meu refúgio de médico de pessoas singulares as coisas parecem mais simples. Posso me pautar por suas histórias clínicas e tomar decisões artesanais para cada um, sem ter que escolher decisões lineares que sirvam pra todos. Para Maria Francisca, talvez a vacinação reduza a probabilidade de nova estadia no hospital. E quando sua filha Luana, que acompanhei desde o nascimento, estiver gripada, vou cuidá-la como um joalheiro cuida de jóias, como um médico de família e comunidade cuida de cada pessoa. E, assim, desta vez pode escolher ficar sem a vacina.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Gripe A e a justiça


A gente não consegue ver fila que já quer entrar. A clássica "de graça até injeção na testa" se concretizou com a vacinação para a gripe A. Todo mundo arrumando uma doença crônica ("sou asmático", "sou isso, sou aquilo") pra poder ter o "benefício" da (segundo o modelo vigente de saúde) proteção.
Não bastasse todas as polêmicas técnicas envolvidas nessa questão, e a dificuldade que um gestor de saúde tem que equacionar, vem o Ministério Público (Federal) aprontar mais uma: mandar vacinar todo mundo do Paraná. Claro: ano passado foram 280 mortes... E quanto, mesmo, é que morreram nas rodovias do Estado? Quantos morreram por diarréia?

Enquanto o Ministério Público (este, Estadual) estava lutando bravamente pra reduzir o preço do show do Roberto Carlos, mostrava apenas um pouco de sua vocação. Agora se mete em priorização de gastos dos recursos da saúde. Como se os recortes populacionais que se fazem para ações de saúde não fossem fruto de decisão técnica, após ponderações de tudo quanto é ordem, para reduzir o grau de incerteza.

Quero discutir os excessos dessa vacinação mas não posso. Tenho que discutir como um advogado, arvorando-se defensor público, come na mão do modelo biomédico e do senso comum para decidir o que não sabe. Para obrigar o setor Saúde a tomar decisões que, pra ser suave, podemos chamar de imbecis.

O Brazil inteiro se dobra ao Paraná: os estados da Federação terão que abrir mão de grande parte dos seus lotes de vacina repassando pra cá, pra que se cumpra a liminar.

Numa dessas, os outros estados terão menos transtornos...
Sorte deles.

domingo, 4 de abril de 2010

Mamografia: ajuda ou atrapalha?


Cada dia tem uma...

O British Journal of Medicine (BMJ, para os íntimos) publica nesta semana uma ponderação interessante: pra cada duas mulheres salvas do cancer de mama (detectado pela mamografia), uma será sobrediagnosticada. Isso significa que esta será tratada desnecessariamente. Mas com esses dados o autor conclui, obviamente: os benefícios superam os danos.

Mas essa ponderação é interessante porque em Jan/2009 um artigo de revisão mostrou que o diagnóstico de Ca de mama aumentou dramaticamente à medida que os países foram adotando política de rastreio pela mamografia. Com isso, tumores que permaneceriam em "repouso" até o final da vida foram flagrados e tratados desnecessariamente.

Mas o autor do artigo recente pondera que, enquanto temos que realizar 1000 mamografias para detectar cerca de 8 tumores e, com isso, reduzir 30% das mortes pela doença, dentre essas 1000 mamografias serão sobrediagnosticados 3 tumores.

Que coisa...
Tudo é cheio de relação custo-benefício.