quinta-feira, 26 de dezembro de 2019



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A prática do cuidado clínico: a atualidade do que não se pode medir



O dilema sobre o lugar que ocupam dor, angústia, sofrimento e ato do cuidado aparece em cada encontro terapêutico de quem cuida e é cuidado. As grandes epidemias e pestes – ainda que frequentemente anunciadas – não estão mais em destaque no nosso tempo. Temos, em ascensão, sofreres difusos, sem limites e rótulos nítidos, com denominações múltiplas, que encontram abordagens apoiadas em vetores explicativos que hoje já mostram seu esgotamento, sua insuficiência.

De fato, as práticas clínicas foram disciplinadas para se alinharem à grande Ciência que tudo mede, conta e pesa, independente do que cada coisa possa significar. Exonera de seu foco a vida das relações e a forma como cada um experimenta seus sintomas, afirmando os resultados obtidos nas condições “puras” e ideais dos laboratórios, como parâmetro-guia das práticas do cuidado. Mesmo que estes sintomas e essas práticas aconteçam na vida impura e pecaminosa dos corpos e das almas de todos. Se e quando considerados, os fatores imponderáveis do cotidiano são reduzidos a categorias isoladas, também sem interações. Ao final, o que se utiliza é um modelo com uma lista idealizada de agravos ordenados em tabelas que não são capazes de acondicionar o mundo animado por dores e sofrimentos singulares. Satisfatório para explicações, insuficiente para subsidiar o cuidado.

Assim, o imperativo da liturgia tecnocientífica reduz cada dor, cada esboço de gemido à dimensão material explicável e verificável por seus instrumentais. E, sem escuta e olhar para a dimensão não codificável do sofrimento, as angústias, as dores-da-alma, os rangeres-de-dentes e apertos-do-coração, permanecem emudecidas e latentes. Porque percebidos e narráveis, mas não subsidiados na razão técnica.

E, se invisíveis para uma universalização racional objetivista, esses sofreres latentes permanecem disponíveis para manifestarem-se nas inflexões que cada biografia humana apresenta. Se nós, profissionais do cuidado, ficarmos atentos podemos perceber: cada portador de uma queixa clínica nominada insiste em nos convidar para o simbólico embutido. Como se cada nome de doença ou resultado de um exame não conseguisse ficar puro e limpinho (como gostaríamos, nós os diagnosticadores) de seus significados e impactos no mundo da vida. O paciente (patiens: aquele que padece), parece buscar o olhar para seu sofrimento e não o enquadramento classificatório de sua narrativa. (Mesmo que, hoje, percebemos também o paciente buscando explicações racionais e incessantes para seus agravos, chegando talvez à agonia do totalmente pensado, citada por Gilberto Safra.

Eu, médico, me bato nesses dilemas e observo repetidamente certas angústias não vividas, não significadas, fortemente associadas a sintomas crônicos. Viktor Frankl faz uma aproximação para refletirmos sobre isso: o sentido da existência (ou a falta dele) é premissa importante na capacidade com que lidamos com as vicissitudes. A partir dessas reflexões, como médico de família, fui percebendo os movimentos emocionais dos pacientes em suas biografias e me carregando de perguntas.

O conceito de experiência como sensação + significado permite-nos aprofundar a busca da compreensão do cuidar terapêutico. Larrosa Bondia é definitivo nesse tema: é possível perceber que esse lugar da experiência pode ser uma ponte para um núcleo pessoal mais profundo e essencial de cada humano. Porque é um lugar misterioso que transcende a racionalidade. Como se fosse uma janela que permite vislumbrar a essência, tanto originária do humano (assim chamada ontológica) quanto a que acolhe os acontecimentos de cada existência singular (chamada ôntica). E, se o homem é uma pergunta ambulante em direção ao sentido fundamental da existência (Safra, Hermenêutica da situação clínica, Pg 22), então as experiências são momentos onde todos tocamos, de algum jeito, a profundidade do ser. O sofrimento é uma dessas pontes importantes para essa essência.

A dimensão mais profunda do ser manifesta-se, tanto individual quanto socialmente, através da ética, da estética e do sagrado, chamados por Safra como o Ethos humano. Se observarmos que, Ethos, em grego, equivale tanto a hábito quanto habitação, podemos inferir que a ética tem morada no hábito, no cotidiano escolhido pela individualidade humana. Lembrando que Aristóteles afirmava claramente que o hábito é ação escolhida do ser humano, portanto não automático, não instintivo. Ou seja, o Ethos afirma o ser em sua individualidade, através a ação cotidiana ética, estética e sagrada (que podemos chamar de “encantada”).

E os profissionais de saúde são convidados o tempo todo a tocarem essa dimensão profunda da essência da pessoa que procura cuidado. Pois na dor, angústia e sofrimento manifesta-se o mais profundo de cada um. E todo contato com essa face tão reveladora, mas tão exposta, exige um cuidado ja conhecido de todas as culturas. Os cuidadores da tradição sempre são preparados em longos rituais para desenvolverem o olhar e o zelo para o momento terapêutico.

A racionalidade que embasa a nossa prática é irrenunciável, claro. Mas sem uma ampliação da percepção, não será possível tocar a essência do ser.

Talvez os profissionais de saúde desta época tenham que sensibilizar seus órgãos de percepção pra ouvirem e verem as outras dimensões desse ser humano e acompanhá-lo em sua cruzada, em busca das respostas para o sentido da existência.


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