segunda-feira, 26 de abril de 2010



Ainda a Gripe A/H1N1




Liga-me Maria Francisca perguntando se deve ou não vacinar Luana, sua filha de 5 anos, contra a Influenza A/H1N1, além dela própria. Cá comigo pondero todas as variáveis envolvidas e tento equacionar de uma forma singular e pessoal, o caso de cada uma. A pequena Luana foi amamentada durante doze meses, é saudável até o momento (jamais necessitou usar antibióticos). Sua mãe, Francisca, é fumante, vive com uma tosse que não passa e, mês passado, por um cálculo renal acabou desenvolvendo infecção urinária que, para encurtar a história, redundou em três dias de passagem pela UTI. Portanto, saúde frágil. Provocante, pergunto por que ela própria deveria ser vacinada. Ela prontamente me responde que deve prevenir-se já que não quer passar por outra estada no hospital...


A partir dessa imagem do cotidiano de um médico de família e comunidade - que cuida de sujeitos sociais (não apenas de doenças “objetivas”) - me surgiram outras reflexões, para além deste anedótico caso: se Maria Francisca quer prevenir-se para não ter outra doença grave, por que não para de fumar, já que a principal ação preventiva para ela, sem quaisquer riscos de efeitos indesejáveis, seria parar de fumar e não, miticamente, buscar apenas a “vacina mágica” que vai salvar a lavoura?


Imaginei as ponderações, angústias e indecisões pelas quais passa um gestor, não de sujeitos individuais como eu, mas da saúde de uma população, o chamado “especialista em Saúde Coletiva”. Juntei as minhas reflexões e compartilho com vocês neste artigo os dilemas que, imagino, passam pelas mesas e cabeças desses gestores, tomando como um case a questão da vacina preventiva da Influenza A/H1N1, a gripe suína.



Um gestor de saúde deveria aconselhar a vacinacão para o grupo populacional pelo qual é responsável? Ou, quando for o caso, deveria comprar um lote de vacinas, transferindo recursos que seriam destinados para outros fins, como exame preventivo para câncer de colo de útero (Papanicolaou para todas as mulheres sexualmente ativas), câncer de mama (mamografia para mulheres maiores de 50 anos) ou câncer de intestino (sangue oculto nas fezes para pessoas maiores de 50 anos)?



Esse gestor terá que equacionar as variáveis que chegam até sua mesa, para reduzir as incertezas e tornar a plataforma para suas decisões a mais sólida possível. Mas, como fazer numa situação como essa, em que um alto grau de incertezas atinge todas as variáveis? Se utilizarmos um modelo explicativo oriundo das ciências exatas, poderemos reduzir a equação a uma mera somatória de vetores da qual extraímos uma resultante. É fácil perceber que esse modelo é insuficiente neste caso: os seres vivos não seguem seu devir por trilhos rígidos, lógicos e plenamente previsíveis. No planejamento da tomada de decisões desse gestor, as informações terão que proceder, sim, dos laboratórios de virulogia, dos boletins epidemiológicos mas, também, dos relatórios possíveis em que constem os desejos e interesses sempre envolvidos no tema. Vejamos como se pode seguir, nesse caminhar à procura de subsídios, para uma tomada de decisões.



INTER


A primeira parada dessa procura situa-se nas mais imediatas variáveis: impacto desse surto viral (mortalidade, por exemplo) e a efetividade/segurança da vacinação. E aí, quando nos detemos na busca desses indicadores interdependentes, já encontramos as primeiras dificuldades:




  • Ao compararmos a mortalidade da gripe A/H1N1 com a da gripe sazonal (comum), verificamos que esta é estimada pelo excesso de mortalidade com relação à media dos outros períodos do ano. Já a mortalidade da pandêmica é calculada com base no número de casos identificados. Só recentemente (março de 2010) foi publicada uma estimativa inicial mostrando que a gripe A/H1N1 parece ter importância na mortalidade pela distribuição etária (em torno de 35 anos) e não pelo número absoluto de pessoas. Isso resulta em mais anos de vida perdidos que a gripe sazonal, que prefere idosos.

· Ao avaliarmos a efetividade da vacina, novas frustrações: ainda não deu tempo de checar, poisefetividade em saúde, como se sabe, é a ação no mundo real. Ou seja: um grupo de pessoas vacinadas deveria ter menor mortalidade. Mas as informações são escassas pelo curto período decorrido. Assim só se observou a eficácia, que é a ação no mundo ideal: vacina-se e observa-se se o organismo produziu anticorpos. E isso não é suficiente. Os indícios não são, digamos, animadores: a Polônia decidiu não vacinar ninguém por entender justamente que não estava bem estabelecida efetividade e segurança dessa medida. Resultado: mesma mortalidade relativa que os outros países europeus que decidiram por vacinar a população. (cerca de 150 mortes para 38 milhões de habitantes). (Washington Post, January 13, 2010; VANESSA GERA. Poland stands alone in refusing swine flu vaccines)



Nosso gestor de saúde coletiva terá que buscar mais fatos e dados para dar sustentação às suas decisões, pois esses indicadores ainda estão pouco sólidos. Mas aí é que as coisas ficam mais incertas.


A gripe A/H1N1 é a primeira influenza pandêmica em 40 anos. Foi identificada em Abril de 2009, no México e declarada um evento importante pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Junho de 2009. Rapidamente foi elevada para o estatuto de pandemia nível 6. Em 2004 a OMS havia modificado os critérios para declarar o que poderia ser pandemia. Essa definição independe da severidade ou da virulência da doença, mas considera a disseminação geográfica. Ou seja: mate ou não mate, se estiver espalhada por vários países, em alguns continentes, de forma sustentada, é pandemia e pronto. E aí o nosso gestor de saúde coletiva para e lista suas questões. Será que a severidade de alguma doença interessa para os países do Primeiro Mundo (que, em última instância, são os que suportam e têm poder na OMS) se ela for limitada a uma pequena área, sem risco de disseminar-se? Diarréia, tuberculose, malária não são pandemias, não entram nas páginas dos jornais: estão restritas e guardadas nos países com baixas condições de saneamento básico e lá permanecem, sem risco de migrar para o primeiro mundo. Não importa se os germes que "causam" sejam vírus ou bactéria: o que determina doença e morte são condições sociais e o modelo explicativo estritamente biológico é insuficiente. Mas, ao contrário, perante qualquer possibilidade de uma doença que possa vir de avião para os países ditos centrais, temos que erguer uma bandeira de alerta e aí, sim, interessa a todos, apesar dos determinantes sociais. E, mesmo aqui, o modelo biologicista não é suficiente para subsidiar nosso gestor de saúde na tomada de decisão, pois chega até sua mesa a notícia sobre a decisão da assembléia da União Europeia de processar diretores da OMS, por suspeita de interferência da indústria farmacêutica em suas decisões ( BMJ 2010;340:c198: Politician accuses drug companies of overplaying dangers of H1N1 by Rory Watson). Nada que não seja óbvio.



Por isso, a notícia (BMJ 2010;340:c201: WHO vaccine expert had conflict of interest, Danish newspaper claims by Jo Carlowe) de que o consultor para vacinas da OMS, Juhani Eskola, recebeu uma doação (bagatela de nove milhoes de dólares - bobagem, cá entre nós) da GlaxoSmithKline para seu centro de pesquisa (Finnish National Institute for Health and Welfare) balança o nosso juízo. Esse é justamente o principal laboratório fabricante das vacinas para a gripe A/H1N1.


O gestor de saúde coletiva, ao ler essa notícia, tem que dar uma paradinha, rever as informações que, até agora, não aumentaram o seu grau de certeza. Infelizmente as planilhas com resultados "duros" de dados epidemiológicos não são suficientes, mesmo que muito mais exatas, muito mais seguras. O mundo, porém já não aceita mais reduzir a vida a números, o que era um sonho da ciência moderna. Pra espairecer, nosso gestor vai ler seus e-mails.


Recebe um alerta de sua prima dileta: os perigos da vacina da gripe A/H1N1: “aleja, paralisa, mata...”. O segundo mail (também da prima cuidadosa) explica fanática e vigorosamente que esse virus A foi fabricado e espalhado pelos laboratórios. Ou seja: não bastavam os desencontros das informações que estavam em sua mesa e vem, agora, as teorias conspiratórias. Tem também um link para um vídeo no Youtube que, longe de distrair, prova por a-mais-b que tudo isso é o castigo divino ao homem atual que pecou e agora está a pagar por tudo: é o final dos tempos, enfim...


Nem a arrogância da ciência, tampouco a ingenuidade das crenças conspiratórias deram conta de instrumentalizar os tomadores de decisão. E o gestor de saúde coletiva, ainda inseguro para definir solução, se surpreende ao ler uma notícia de que o Ministério Público Federal do Estado do Paraná solicitou uma liminar e um juiz deferiu para que se vacinem cem por cento da população do estado. Enfim, tudo estará resolvido através de alguns papéis que circularam pelos corredores da burocracia judiciária. Assim as incertezas de uma matéria tão complexa são “resolvidas”. Não por epidemiologistas, infectologistas ou outros da área. Mas por um profissional do direito que abre o peito e resolve tudo numa cartada grave e determinadora. E o nosso gestor, suspira meio frustrado e meio aliviado. As reflexões nem sequer foram consideradas pelo defensor que, certamente movido por rompantes heróicos, resolveu dar um murro na mesa e mandar cumprir algo, para cuja substância não tem aproximação necessária. Porque não é gestor de saúde coletiva. E, em gestão, quem tem que dar palpite é quem está imerso no tema, maneja variáveis e, após ponderações, decide.


O que posso perceber é que em meu refúgio de médico de pessoas singulares as coisas parecem mais simples. Posso me pautar por suas histórias clínicas e tomar decisões artesanais para cada um, sem ter que escolher decisões lineares que sirvam pra todos. Para Maria Francisca, talvez a vacinação reduza a probabilidade de nova estadia no hospital. E quando sua filha Luana, que acompanhei desde o nascimento, estiver gripada, vou cuidá-la como um joalheiro cuida de jóias, como um médico de família e comunidade cuida de cada pessoa. E, assim, desta vez pode escolher ficar sem a vacina.

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