terça-feira, 30 de março de 2010

A dúvida científica e o mundo real


Estava no carro ouvindo o sambão muito antigo “Noticia de Jornal” de Luiz Reis - Haroldo Barbosa, cantado pelo Chico Buarque. Como pensei que a composição era do nosso compositor maior, fiquei  atento à letra. Como se sabe, os poetas nos trazem pérolas do fundo do mar e, como se fosse mágica, nem eles mesmos se dão conta.

Dá uma olhada se não é uma revelação

Tentou contra a existência
Num humilde barracão.
Joana de tal, por causa de um tal João.
Depois de medicada,
Retirou-se pro seu lar.
Aí a notícia carece de exatidão:
O lar não mais existe
Ninguém volta ao que acabou
Joana é mais uma mulata triste que errou.

Errou na dose
Errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou
Ninguém morou na dor que era o seu mal
A dor da gente não sai no jornal.

Seria impossível resistir a dissecar cada deixa. 

O poeta lê no jornal a notícia, descrita objetivamente como quer a nossa época tecnocientífica. Como se fosse possível não ser pessoal, subjetivo. Como se a mesma notícia não aparecesse em cada lugar de cada jeito. Pois, as coisas acontecem e cada um interpreta segundo seu olho particular. A tal objetividade absoluta só é possível nas ciências naturais e não se reproduz na vida real.
Segundo os versos da canção, Joana é noticiada com o sobrenome genérico e asséptico de Tal. O homem errado por quem se apaixona é o João genérico de Tal, como gosta de descrever o jornalismo policial. Esquecendo a crueldade e os preconceitos que movem os dedos que escrevem as notícias, vemos algo instigante: a tentativa caricatural e deslocada da assepsia objetivada da ciência. Cidadã das ciências naturais, pula os muros das universidades e entra feito chip nas cabeças de todos.
E não poderia ser diferente: desde criança já somos adestrados para interpretarmos e aprendermos o mundo pelo método científico. Aliás, as crianças nem experimentam o mundo: explicam-no e basta. Percebem, do mundo, as quantificações e medidas que os homens de aço da ciência, ao longo dos anos, foram contando, pesando e medindo. Trancadas em salas de aulas ou nos seus apartamentos elas, as crianças, sabem noticias e explicações sobre o mundo. Domesticam-se pela explicação e não pela degustação.
E, assim, o que era uma proposta para Descartes, no seu Discurso do Método, já é automático para todos nós: perante um fato do mundo, sempre vamos metodologicamente decompor e duvidar.
E a Joana da canção tenta suicídio por causa do João. Foi medicada, segundo, ainda, a notícia do jornal, e Retirou-se pro seu lar. Mas, comenta agora o poeta, a notícia carece de exatidão. Ou seja, mesmo com a tentativa da notícia em mimetizar objetividades "científica" na descrição da história da Joana, o poeta detecta uma inexatidão, um erro. Mas, ao corrigi-lo, o poeta faz muito mais que ser exato: traz a sua subjetividade. Corajosamente interpreta, segundo seu juízo, a situação. Ironiza as bases exatas da notícia constatando com fatos palpáveis: O lar não mais existe/Ninguém volta ao que acabou.
O fracasso da Joana, que errou em tudo, não foi notado nem pelo repórter nem pelo pronto-socorro que, teoricamente, acudiria o sofrimento e a dor. Mas a dor da perda, quem cuida? Porque Joana agora pertence a uma categoria conhecida como porbaixodocudacobra: a dos suicidas fracassados. Porque, depois de tudo, ainda errou na dose do veneno e ficou sem o João e com a dor.
Mas e porque a dor não sai no jornal?
Será que “sai” nos prontuários médicos dos pronto socorros? Ou ali só se descrevem códigos de doenças sem espaço para descrição do sofrimento?
Aí teríamos que olhar a dor, que não se mede com régua ou balança acurada. Só os poetas imprecisos podem adentrar-se nessa mata de incertezas que tanto amedronta os filhos da modernidade.
Covarde, me refugio nas discussões utópicas e seguras da ciência. Esta que me arroga o direito de explicar a vida, entendendo sem compreendê-la.

3 comentários:

  1. Angel, para aprofundar a questão da assepsia científica e da solidão, vale conferir o livro "Tempos Líquidos", do Baumann (acho que errei na grafia), o sociólogo polonês. Nos faz refletir sobre este "modus vivendi" imersos no medo, na individualização exacerbada. Enquanto lia me veio a seguinte curiosidade: Como é a visão antroposófica sobre esse afastamento do coletivo para a distorção da individualização exacerbada, coberta pelo manto do "preservar o individual"?

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  2. Parece que a individualização é o único fato que nos diferencia das outras culturas. Isso porque a maioria dos antropólogos não aceita a teoria evolucionista social que caminharia do primitivo para chegar até o mundo branco-ocidental-cristã-capitalista de hoje.
    A Antroposofia é evolucionista. Ela mira pra frente, como quer a Modernidade. Mas a concordância quase que para aí.
    Além disso, a individualização, que as três grandes religiões pregam, parece ser um fato de conquista mesmo. Mesmo que a Antropologia mais avançada não simpatize com isso porque tem cara de etnocentrismo. A Antroposofia fála o tempo todo nesse processo de individuação (emprestei do Jung) e de como esse fato gera os desafios da época. Esse, me parece, seria um dos eixos do discurso antroposófico. O que não é nada simpático.

    Sei lá...

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  3. Lembrei de um artigo que li há tempos que comenta a interpretação do sistema imunológico pelo cogito cartesiano como um exército combatendo um inimigo a ser vencido e, neste artigo, que comenta a concepção de Maturana e Varela, a Teoria da Cognição de Santiago,a necessária mudança de paradigma ( a somatória de conhecimentos como a lente pela qual lemos o mundo) "No processo da vida "produzimos o mundo", ao contrário de "representarmos um mundo" que existiria, para nós, independente e por si : "Viver é conhecer"." http://www.jornalinfinito.com.br/series.asp?cod=6
    Patricia

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