terça-feira, 30 de março de 2010

De jardim da infância ao vazio: uma viagem





Ontem os pais do Lucas (ou era Mateus? ou era outro apóstolo, como está voga?) me contaram como ele está reagindo mal com a entrada na primeira série da escola, aos quase sete anos de idade. Dormindo mal e meio agressivo. Parece tenso. E antes vinha bem.


Aquela mesma escola que era tão suave, amigável e doce no jardim da infância, agora, foi só iniciar o primário, mostrou os dentes e ficou séria: “acabou a brincadeira criançadinha, agora vamos ao trabalho!”


Isso me fez pensar. Talvez eu tenha ficado mais impressionado que devia. Mas fiquei. E, vieram algumas reflexões.


A primeira, meramente constatativa, refere-se à forma como as escolas não respeitam nem mesmo os pequenos que frequentam o jardim da infância. Como o MEC não dita e lista os conteúdos, cada um faz a bobaginha que quer. É tudo brincadeirinha porque depois é que vem a coisa pra valer: o estudo de verdade. Ou seja, na hora em que a massa ainda está mole, na hora em que os pequenos talvez estejam mais sucetíveis a serem iniciados no sistema de significados da nossa cultura, vem uma mocinha e fica matando o tempo dos pentelhinhos. Talvez estejam, de fato, sendo iniciados num sistema de significados sem significado, ou, com o sentido de apenas atuar no mundo das trocas de objetos. Do meramente comprar e descartar,enfim.


E, claro, tem as outras escolas, mais "sérias", que já alfabetizam e adestram os inocentes para irem já sendo ameaçados desde o jardim mesmo. O mundo é uma guerra, vislumbram. Então vamos ter um treinamento de guerra. Guerra, aqui, no sentido de estar alerta e prontos pro bote ou a defesa. Mas, o importante, é estar tenso porque – e isso é o que me veio – o mundo é hostil. E tasca-lhe nota pra cá e provas pra lá. Carga no conteúdo.


Enfim, a primeira constatação é que de fato, o jardim da infância – que se pode resumir como o contato grupal das crianças em sua fase mais frágil, mais vulnerável à definição de seus rumos, mais formadora dos significados das coisas do mundo – não é encarado com a mínima seriedade. É encarado, sim, como um intervalo para ser preenchido por algum entretenimento, enquanto a coisa séria, a coisa pra valer não chega. Daí as musiquinhas desconectadas da cultura, os uniformes (militar?) com tecidos escrotos, as apresentações televisivas-like e obrigatórias para as avós verem.


E, repito, sem considerar que algumas muitas outras chamadas “escolas” (essas lojinhas que têm nome de bichinho e sobrenome "feliz" e placa com desenhinhos de nuvens, anjos etc e aceitam treinar e dar ração mal equilibrada para esses mais-uns, que só sabem aborrecer a vida dos pretensos pais) já iniciam o adestramento militar (agora entendi o uniforme!) de, ameaçadora e competitivamente, encher a panela de conteúdos e conteúdos e conteúdos teóricos.


Aliás, conteúdos que conceituam ao invés de propiciarem a vivência. Sempre separadamente do mundo: eu, sujeito, olhando, classificando e rotulando o mundo, objeto. Esse chip entra no cérebro, nas veias, nos músculos e na alma. Nunca mais vai sair. A mãe Natureza é objeto a ser estudado para ser dominado. Como, de resto, os outros mais-uns também deverão ser vistos como objeto.


Enquanto estamos cá preocupados com a separação sujeito-objeto, os caras estão lá, preparando um exército pra negar tudo: nossos filhos. Nós ficamos discutindo o gosto do pão e eles lá na cozinha preparando a massa, indiferentes a tudo.

“Cuidam” de nossos filhos justamente no momento de definir os rumos. Enquanto o gravador está ligado. Depois, encerra a gravação e está tudo quase pronto.


O resto é conseqüência.


Bem, aí vem a segunda especulação.

Refere-se à primeira, de um modo não tão direto, mas me vem acossar os pensamentos pela forma como a gente costumeiramente denomina as ações na medicina (antiinflamamtório, antibiótico, combater a febre) que volta ao modelo beligerante. Percebo que às vezes esse jeito, antes descrito, de conduzir as pequenas gentes na escola, lembra também a formação (formação?) militar. Mas não é isso. Isso de jeitão grosseiro, exato, frio e militar podemos deduzir depois. E nem quero me prender ao termos “militar” porque assim o é, por um lado, mas não o é por outros (não há, por exemplo, hierarquia nítida nem disciplina). Apenas penso na questão da vigilância constante, espartana, na espera de hostilidade. Nessa visão, o mundo é brabo.


O que importa é que lembrei de um educador que li há muitos anos atrás e que, em resumo, falava da formação do conjunto do aparelho psico-mental dos meninos de rua: acabam sendo eficazes e rápidos para as demandas imediatas exclusivamente; não conseguem dar conta de absolutamente nada que aprofunde e exija o mínimo de ponderação. A explicação desse e de muitos outros estudiosos é que a constante e, desde cedo, situação de risco exige uma vigilância para a sobrevida. Essa exigência suga todas as outras formações mentais mais profundas. O primeiro, mais grosseiro e necessário nível de respostas mais ou menos elaboradas do nosso comportamento, portanto, relaciona-se com a segurança. Para atacar ou defender, estamos prontos com mais facilidade (e quando estimulados) do que para qualquer outra necessidade. Nessa perspectiva, o mundo é hostil. Diferente para um segundo nível de elaboração, em que se necessita um tempo de ponderação para o raciocínio especulativo. Ou, ao menos, o raciocínio lógico (a lógica que tenta explicar as regras do mundo aparente). E, para essa possibilidade, tenho que informar a criança em desenvolvimento que ela está liberada da vigilância a um mundo hostil. Portanto, é mais um “fique tranqüila” do que um “me diga aí qual a resposta”. Amorosa, segurosa e calorosamente protegida e não espinhosa, rugosa e rancorosamente sempre alerta para vencer.

Mas, a qualidade mais profunda, a sensibilidade (não lógica) para perceber a conformação estética do mundo e, portanto, para perceber o não aparente, depende de uma convivência das crianças exatamente de forma contrária a essa dos meninos de rua: o mundo é bom. Quanto mais confortável e quentinho mais é possível o mergulho para preparação dessas mais profundas qualidades, para sacar outras coisas do mundo que não apenas o perceptível.


O que pergunto, depois dessa tempestade é:

  • esse modelo de separação sujeito-objeto, com a ambientação tão fria para as crianças, não replica o modelo virtualmente parecido com os meninos de rua (e, talvez, de alguém voltado para defender-se de um mundo hostil)?
  • Essa vigilância e competição de provas, avaliações, classificações (que inicialmente chamei de militar mas depois desisti) entre os melhores e piores não despertaria a hipertrofia desse cascão de qualidades psico-mentais dirigido apenas para a segurança (fuga/ataque)?

Quem agride ou protege-se, não pensa. E, o que é pior, não sente.


Também me acossa outra dúvida: como vamos tratar o outro, o planeta, os animais e o escambau, se achamos que o mundo é uma guerra?


Depois reclamam dos psicopatas...

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